Publicado em 16 de agosto de 2012 às 18:46
A palavra
“mas” é uma conjunção coordenada adversativa, utilizada, pelo que se lê nas
boas gramáticas, em situações que indicam oposição, sentido contrário. Tem
sido empregada, também, com muita insistência, por boa parte dos jornalistas,
principalmente os mais conhecidos colunistas e comentaristas de jornais e tevês
– nacionais e regionais –, para turvar a realidade. Virou quase um mantra
jornalístico.
“A greve é
um direito assegurado pela Constituição ao trabalhador brasileiro, mas…” não
deveria prejudicar a população que necessita dos serviços da categoria, não
deveria impedir o direito de ir e vir da população (muito comum quando ocorre
no transporte coletivo); é justa, “mas” os alunos são os maiores prejudicados
(e a culpa cai no colo do professor e nunca do prefeito, governador ou
presidente). “Mas” a crise na Europa preocupa e não é hora de o governo
brasileiro conceder reajuste de salário aos servidores. Esta a desculpa mais
recente. Como se conclui, a greve é um direito do trabalhador, “mas” só poderá
ser exercida se não ocasionar problema para ninguém, seja o empresário, seja o
governo, seja o povo.
Mas a
greve é um instrumento de pressão justamente pelos possíveis danos
(financeiros) ou transtornos (à população e aos usuários dos serviços em
questão) que é capaz de provocar. Infelizmente. Toda a tensão gerada, numa
sociedade democrática e cidadã, deveria resultar em poder de pressão sobre os
empregadores – privados ou públicos –, para que buscassem, o mais rápido
possível, um acordo justo com os grevistas. “Mas”, com a ajuda determinante da
mídia nacional, não é assim que ocorre. O ônus recai somente sobre o grevista.
A greve
dos professores é justa, “mas” os governos e os municípios não têm como arcar
com as despesas. A simples declaração de um presidente da República, de um
governador ou de um prefeito é prova cabal dessa impossibilidade. Nenhum
repórter se interessa em vasculhar os gastos do poder público, para conferir se
existe mesmo essa impossibilidade.
Nenhum
repórter parece se escandalizar quando o STJ determina que os servidores da
Anvisa e do Ministério da Agricultura devem manter 70% do seu pessoal
trabalhando. Mais um pouco e a Justiça brasileira há de determinar que, sim,
podem fazer greve, “mas” que continuem trabalhando…
Ninguém
discute que a própria lei de greve da iniciativa privada – depois estendida
para o serviço público, por falta de uma regulamentação específica – prevê
apenas 30% dos trabalhadores atuando em serviços essenciais. Esta ilegalidade
flagrante não interessa à mídia discutir. Como também não interessa abordar a
inconstitucionalidade de transferir atividades exclusivas do funcionalismo
público federal para estados e municípios, como se fosse possível, de uma hora
para outra, substituir profissionais com conhecimentos muito específicos sobre
atividades em portos, aeroportos e fronteiras, sem pôr em risco a própria
segurança da população.
Cabe aos
trabalhadores lutar, sempre, para manter os direitos conquistados, entre eles,
o poder de compra do salário, sob pena de vê-lo diminuir gradativamente,
aumentando na outra ponta o “lucro” do empregador, seja ele governo ou
iniciativa privada. No caso dos governos, dinheiro que geralmente é
transferido, em boa parte, para a iniciativa privada, sob as mais variadas
formas de concessões (empréstimos subsidiados, isenções fiscais etc.). Não
precisa ser nenhum gênio em economia ou história para saber qual é o lado mais
fraco nessa disputa e o quanto é legítimo lutar para mudar essa correlação de
forças. E é exatamente nessa hora crucial que boa parte dos jornalistas,
sobretudo colunistas e comentaristas, não têm dúvida em ficar do lado do mais
forte.
Basta
sacar do bolso um “mas” e não contextualizar informações que seriam
fundamentais para saber se determinado pleito pode ou não ser atendido.
Geralmente, é um festival de clichês, afirmações não comprovadas, que vão se
legitimando e influenciando a opinião pública pela simples repetição. Não
importa que o número de servidores públicos federais se mantenha praticamente o
mesmo há 20 anos, a mídia sempre vai alertar para o aumento dos gastos
públicos, como se não houvesse nenhuma relação entre número de servidores,
salários, órgãos bem equipados e a qualidade no atendimento à população.
A forma
mais comum de falsear a realidade é trabalhar com números absolutos. No caso
recente da greve do serviço público federal, para citar um exemplo, diz o
governo que, se fosse atender a tudo o que pedem os servidores, iria onerar o
caixa do governo em cerca de R$ 92 bilhões. Números atirados a esmo, sem
contextualizações, sempre parecem eloquentes e induzem à conclusão da
impossibilidade de estender o benefício aos trabalhadores.
No
entanto, esses mesmos jornalistas, colunistas, comentaristas não ousam
perguntar para onde vai o dinheiro que o país produz, com o suor de todos os
trabalhadores. Por que o governo abriu mão, desde 2008, de R$ 26 bilhões em
impostos para a indústria automotiva? Que, por sua vez, enviou quase R$ 15
bilhões ao exterior, na forma de lucros e dividendos?
O “fator
previdenciário” retirou mais de R$ 21 bilhões dos trabalhadores. Quem mais
se beneficia, há séculos, é justamente a elite econômica e a classe política do
país, que atuam em
parceria. Se isso não fosse verdade, o Brasil não seria um
dos países com a pior distribuição de renda do planeta.
Valores
nominais, insisto, não explicam muita coisa. É preciso sempre comparar. Ao
contrário do que diz a mídia, os gastos do governo federal com os servidores,
em 2000, eram de 4,8% do Produto Interno Bruto (PIB). Doze anos depois, é menor
ainda. A projeção é que feche o ano de 2012 em 4,15%. O país tem hoje
praticamente o mesmo número de servidores do início do governo FHC, e a
população que demanda por serviços cresceu. E há um agravante: quase 50% deve
se aposentar nos próximos dez anos. Como manter serviços de qualidade com
órgãos sucateados e sem profissionais treinados e motivados para o exercício da
função? Se isso vale para a iniciativa privada, deve valer também para a
administração pública.
Somente em
isenção fiscal, nos últimos dois anos, o país concedeu mais de R$ 150 bilhões a
pouco mais de uma dúzia de ramos industriais. E o cofre continua aberto, pois,
nas palavras do próprio ministro da Fazenda Guido Mantega, “qualquer setor que
estiver interessado na desoneração da folha, representado por sua entidade,
deve entrar em contato conosco” (Agência Brasil).
Tudo em
nome de boas causas: a manutenção de empregos e o aumento da competitividade
industrial. Sobre lucros que tornam o Brasil um dos campeões da desigualdade na
distribuição de renda, nenhuma linha, nenhuma palavra. Porque por trás do
discurso das “dificuldades” sempre está a transferência de renda dos
trabalhadores para os empregadores.
O mito de
que se gasta demais com os servidores públicos federais também não resiste à
observação correta dos números. Quaisquer que sejam os valores apresentados por
quem tenta defender a tese de que o gasto é excessivo – diferente de se é bem
aplicado, porque esta seria uma boa discussão –, não dá para se contrapor a uma
evidência: a Receita Corrente Líquida, ou seja, o que o governo arrecada em
impostos, comparado com o que o governo paga ao funcionalismo público federal,
diminuiu de 56,2% em 1995 para 32,1% em 2011, conforme registra o Boletim
Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento.
A mídia,
que bate forte na greve do funcionalismo público federal – como é de praxe em
greves de quaisquer trabalhadores –, não demonstra nenhum interesse em trazer
para a opinião pública do país o tema que é central para esclarecer um “rombo” nas
finanças da União, que enriquece um grupo muito pequeno de investidores e
amplia a desigualdade no país: a dívida pública, superior a R$ 2,1 bilhões por
dia!
Em 2011
foram destinados R$ 708 bilhões para a dívida pública que, aliás, nunca foi
auditada, apesar de vários indícios de ilegalidades e ilegitimidades desde os
anos 70, conforme denuncia Maria Lúcia Fattorelli, da Auditoria Cidadã da
Dívida.
Para
concluir: no Brasil, a greve é um direito do trabalhador, “mas” só pode ser
exercida se não vier a causar nenhum tipo de prejuízo ou problema a quem quer
que seja. E tem sido cada vez mais regulamentada – favoravelmente ao capital –
pelo Judiciário. Uma espécie de ditadura da democracia, com jurisprudência
legal. Não é sem razão que, historicamente, quando a justiça não mereceu este
nome, grandes avanços sociais foram feitos, inicialmente, à margem da
legalidade.
*Jornalista,
assessor de imprensa do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal
no Estado de SC (Sintrafesc)
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